Gustavo Werneck, Estado de Minas
A vida entre dois monstros: um assombra dia e noite, o outro, incontrolável, invade casas e ruas durante as chuvas torrenciais do verão. Famílias mineiras também se espremem entre a cruz e a espada, pois sobre a cabeça está o barranco, e, a poucos metros dos pés, a ribanceira que desemboca no córrego. E tem também os ribeirinhos, cujas moradias se cobrem de barro, encontrando como única alternativa o abrigo, longe de seus pertences, da sua história e, muitas vezes, de pessoas queridas.
Quem vive em áreas de risco conhece os perigos, aprende a “vigiar” o tempo e reúne todas as forças para lutar. Em Congonhas, na Região Central do estado, moradores do Residencial Gualter Monteiro dizem que as indefinições por parte do poder público e de uma mineradora aumentam os prejuízos e o nível de estresse coletivo.
Na capital, as famílias da Vila Chaves, na Região Noroeste, se equilibram à beira dos abismos. Já em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), a exemplo de Sabará, Raposos, Betim e Brumadinho, é hora da faxina, de voltar com os móveis para o lugar e contar as perdas materiais após a enchente.
As águas também tomaram conta de Governador Valadares, no leste mineiro, com a cheia do Rio Doce e os inúmeros transtornos para os habitantes da cidade e região. Neste cenário, não escapam as estradas, os pontos turísticos, a exemplo de Capitólio, na Região Sudoeste, e os celebrados patrimônios mundiais, a exemplo de Congonhas e Ouro Preto, onde até casarão tombado foi soterrado por encosta no Centro Histórico.
São 11h de quarta-feira, o sol reapareceu e chegou a hora de lavar a casa, tirar o barro do passeio, encontrar caminho no meio do lamaçal e recolocar a vida no eixo. No Residencial Gualter Monteiro (nome de um ex-prefeito), onde vivem cerca de 2,6mil pessoas incluindo o vizinho bairro Cristo Rei, em Congonhas, na Região Central do estado, os transtornos causados pela cheia do Rio Maranhão foram grandes e aumentaram a tensão dos moradores, permanentemente assustados com um possível rompimento da barragem da mina Casa de Pedra, da CSN Mineração.
“Convivemos com dois monstros. Todo dia, a ameaça da barragem, e, em dezembro e janeiro, as chuvas. Moro aqui com minha mãe, que tem problemas de saúde, então fica mais difícil qualquer decisão. Na verdade, os abalos são mais psicológicos do que físicos”, diz, apreensivo, o eletricista Wellington Barbosa Alves, residente na Rua Maria Fernandes Araújo.
Mostrando a casa atingida pela enchente, Wellington aponta as marcas da água na parede, a lona preta forrando o teto, os móveis encharcados e as roupas perdidas. “Levei o que pude para o cômodo de cima, mas os riscos são iminentes o ano todo.” Fora da casa, perto do campo de futebol coberto de lama, onde duas crianças tentam brincar, o eletricista se encontra no espaço maior das preocupações. “Ali no alto, podemos ver a barragem. Se romper, perdemos a vida, pois é muito próxima. Chegamos aqui muito antes dela, moro aqui há 36 anos. Então, precisamos de uma solução urgente.”
A saída está na resposta de Valdirene Aparecida Santana Maciel, que se mudou há dois anos com o marido e decidiu ir embora. “Moro de aluguel e estou com muito medo. Perdi quase tudo, só fiquei com a geladeira, o fogão e o tanquinho. A gente fica nervosa, e tem a história da barragem.”
INDENIZAÇÃO
Caminhando pelo bairro, a equipe do Estado de Minas encontrou o presidente da Associação dos Moradores do Residencial Gualter Monteiro, Warley Ferreira Costa, que acompanhava os necessários serviços públicos pós-enchente. “Felizmente, todo mundo aqui se ajuda na época de enchente, então fica mais fácil. Outro problema sério está na barragem, e o pessoal quer indenização para sair, não simplesmente uma mudança de lugar”, explica Warley. Uma questão a mais está no fechamento da creche e da escola, levando ao deslocamento das crianças.
Em 29 de abril de 2019, o Ministério Público de Minas Gerais ajuizou ação para que a empresa retire, pagando os custos, as famílias interessadas em sair das áreas de risco no Residencial Gualter Monteiro e Cristo Rei, além da construção de creche e escola.
Na época, a decisão da Justiça foi que a CSN pagasse aluguel para os moradores dos bairros localizados abaixo do Complexo Casa de Pedra.
“Quero ser indenizado. Não aceito alternativa”, assegura Roberto de Paula, de 63 , há quatro décadas residente no local, e firme na limpeza da Rua José Morais Silva. A vizinha, a auxiliar de serviços gerais Rayne Keteleyn Jorge, que mora há seis meses com o marido e dois filhos, também sofreu os efeitos, tendo que ir para a casa de uma tia.
“Viver sob risco é triste, perigoso e desanimador”, afirma a mulher, que contou com a ajuda da irmã Joelma Celeste Jorge e do cunhado Claudinei Gomes. “Somos 28 pessoas da mesma família morando aqui. Com a enchente, dá-se um jeito, mas se a barragem estourar, estaremos todos mortos. Não queremos virar estatística”, ressalta Joelma. A vizinha da frente, a cozinheira Eni de Oliveira Passos, mãe de Laura, de 14, e Davi, de 10, veio do Rio de Janeiro (RJ) para Minas, pois ouviu dizer que “era tranquilo, com boas escolas” e gostou. Mas alerta: “Só de falarem que a barragem é monitorada 24 horas já me preocupa. Se não oferecesse risco, seria diferente”, ressalta.
Em nota, a CSN Mineração informa que recebeu na sexta-feira (14) fiscais da Agência Nacional de Mineração (ANM) para vistoriar o avanço das obras em andamento para corrigir os efeitos da chuva na barragem de Casa de Pedra de Pedra. Três dias antes, os fiscais estiveram na Mina de Fernandinho, também da CSN.
“A empresa segue monitorando os equipamentos com leitura em tempo real, 24 horas por dia, e não foi detectada nenhuma anomalia. Quanto à barragem de Casa de Pedra, a mesma não enfrentou problemas, permanecendo segura e estável. A companhia segue prestando todas as informações necessárias para os órgãos competentes e conta, ainda, com um comitê formado por representantes da sociedade civil desde 2018, com o objetivo de informar à comunidade sobre as ações para descaracterização das barragens, bem como sobre novos projetos. Além disso, têm sido emitidos informes digitais periódicos para a comunidade. Por fim, a empresa lembra que, desde 2020, toda a sua produção é feita com a filtragem total do rejeitos, isto é, sem o uso de barragens.”
O EM pediu esclarecimento à Prefeitura de Congonhas sobre pontos importantes para a comunidade, como a construção de creche e escola, mas não obteve resposta.
Cenário desolador e problema estrutural
As chuvas que se intensificaram no sábado, quando ocorreu a tragédia em Capitólio, no Sudoeste de Minas, com a queda de um paredão de rocha e morte de 10 turistas, e estragos na rodovia BR-040, devido ao transbordamento de um dique de contenção da Mina de Pau Branco, da mineradora Vallourec, em Nova Lima, na RMBH, já deixaram um saldo desolador. Segundo o Boletim da Defesa Civil divulgado ontem, há 377 cidades em situação de emergência em Minas. No período chuvoso (a partir de 1º de outubro), houve 25 mortes e mais de 50 mil pessoas tiveram que sair de casa (6.664 desabrigadas e 45.815 desalojadas).
Os números não traduzem todo sofrimento das famílias atingidas pelas enchentes ou daqueles que se encontram sob a ameaça constante de rompimento de barragens. Como disse a moradora de Congonhas, todos querem viver, e não virar estatística. Sobre esse aspecto, não há um levantamento sobre quantas pessoas moram em áreas de risco em Minas Gerais, mas há uma certeza: “Trata-se de uma situação técnica e política extremamente complexa e que sempre penaliza populações mais pobres, ribeirinhas, de áreas periféricas, sem políticas urbanas”, afirma a antropóloga Andréa Zhouri, coordenadora do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (Gesta), vinculado ao Departamento de Antropologia e Arqueologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Com longa experiência nas questões socioambientais, a professora Andréa Zhouri não poupa as autoridades governamentais e os empreendedores, certa de que os desastres resultam de padrões institucionais econômicos, administrativos e políticos. “Não é correto dizer que os problemas foram causados apenas pelas chuvas. As enchentes em janeiro são recorrentes, os efeitos, previsíveis. Assim, as consequências evidenciam as escolhas econômicas tomadas. Dessa forma, são problemas ambientais, mas também sociotécnicos.”
O conceito de “atingido” demanda atenção e ganha sentido nas palavras da professora. “Esse é o xis da questão. Quem é o atingido? O que é o risco? Não é um problema matemático, de resposta rápida. Há os que moram no entorno de barragem, de hidrelétricas, mas que estavam ali antes de o empreendimento chegar, e, muitas vezes, têm um deslocamento forçado, com perdas maiores do que materiais, pois perdem sua história. Mas, hoje, existe o risco de qualquer um ser atingido trafegando na rodovia BR-040, ou até, como já aconteceu, passando numa via pública da Região Centro-Sul de Belo Horizonte.”
E mais: “Fundamental, portanto, é reverter a economia de visibilidades dos riscos imposta pela ‘geografia do empreendimento’, pois ela não contempla a vida construída no território. Precisamos incorporar um sentido de justiça às decisões político-administrativas”, destaca a coordenadora do Gesta/UFMG.
As últimas chuvas escancararam a insegurança em que vivem os residentes no entorno de empreendimentos de mineração, assegura a bióloga Letícia Oliveira, integrante do Movimento Nacional dos Atingidos por Barragens (MAB). “Falta maior fiscalização, pois a população nunca está segura”, diz Letícia, lembrando que, se não há um número de pessoas ameaçadas, tem-se a certeza de 70% dos atingidos não recebem seus direitos.
“A situação está bem crítica. As pessoas ficam sempre em dúvida, não confiam nas informações, mesmo com avisos e sirenes”, observa Letícia, lembrando os rompimentos de barragens em Bento Rodrigues, em Mariana (em 5 de novembro de 2015) e Brumadinho (que completa três anos no próximo dia 25), ambas somando quase 300 mortos, para se avaliar a extensão desse drama socioambiental. “No Quadrilátero Ferrífero, o problema fica mais evidente. Mas se torna necessário o cumprimento da legislação por parte dos empreendimentos como também a fiscalização, por parte das autoridades, de forma independente”.
A situação crônica decorre de dois fatores de alto risco, diz a presidente nacional do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), arquiteta e urbanista Maria Elisa Baptista. “Grande parte da população não tem onde morar com segurança, sem acesso a terra urbanizada ou a assessoria técnica para construção. Assim, vai para locais insalubres, sujeita a riscos inclusive geológicos.”
Mas a situação não pode ser desvinculada do aumento cada vez maior das áreas ocupadas por mineração e agronegócios. “No primeiro caso, a atividade segue modelos de exploração arcaicos, causando deslizamentos, erosão e outros danos ambientais”, afirma a presidente do IAB. Na sua avaliação, “Minas Gerais se tornou um grande retalho das mineradoras, causadoras da crescente poluição das águas e abertura de crateras. O exemplo maior está no Quadrilátero Ferrífero, no entorno de BH, que tem enorme potencial hídrico, mas exibe as marcas da exploração predatória e das desigualdades sociais.”
Quando chove, Elisângela Soares Arcanjo não tem coragem de transitar na frágil passarela de madeira, sobre um córrego, que lhe garante o acesso à rua. “Morro de medo, então vou abrindo caminho no mato”, confessa a mãe de Ana Cristina, de 18 anos, Davi Luan, de 5, e Maria Eduarda, de 3. Moradora da Vila Chaves, perto do Conjunto Califórnia 2, na Região Noroeste de Belo Horizonte, ela, o marido e os filhos vivem em área de risco geológico. “Não quero sair daqui. Ir para abrigo, para onde já fui há muitos anos. Não quero de jeito nenhum”, diz a simpática Elisângela.
No início da tarde de quarta-feira, a equipe do EM esteve na Vila Chaves e viu as condições das famílias que vivem em casas de alvenaria, mas perto de barrancos. “Meu marido, o Ceará, fala em voltar para a terra natal, levar todo mundo, mas fico pensando no que já construímos. Começamos com um cômodo, há seis anos, já vamos para o terceiro”, diz Elisângela estendendo a roupa no varal e mostrando casas que já caíram, e das quais ficou apenas o alicerce.
Não muito longe, a manicure Dalirian Apolinária, mãe de Lavínia, de 2, resume o cenário na área invadida: “Vivemos aos trancos e barrancos”. Para chegar à porta da moradia, é preciso uma escalada a partir do Beco Vale Verde, na beirada do córrego. “Morar aqui dá medo, a gente nunca consegue dormir direito. Desta vez, felizmente, o córrego não subiu tanto.”Adensamento urbano, assoreamento de cursos d’água e ocupação de áreas que jamais deveriam ser urbanizadas se transformam, durante as chuvas, em fatores de alto risco para os moradores, diz o geógrafo, professor e pesquisador Alessandro Borsagli, que divide seu tempo entre BH e Janaúba, no Norte de Minas. Um dos exemplos dessa situação pode ser visto ao longo do Rio das Velhas, que, neste período, transbordou em Raposos, Santa Luzia e Sabará, com sérios prejuízos.
“Desde a Antiguidade, o ser humano procurou se fixar na margem dos rios, a fim de desenvolver a agricultura e ter água para o consumo das comunidades. Em Belo Horizonte, a partir da década de 1940, houve maior ocupação, pelos menos abastados, das margens do Ribeirão Arrudas, afluente do Velhas e integrante da Bacia do São Francisco. A ocupação, junto a outras intervenções, contribuiu para as enchentes históricas nas décadas de 1980 e 1990, com mortos, desabrigados e prejuízos materiais.”
RISCO GEOLÓGICO
Conforme a Prefeitura de Belo Horizonte, há 2 mil edificações em áreas de risco de vilas e favelas. Em 2021, foram removidas, preventivamente, cerca de 200 famílias.Em nota, a PBH esclarece que o risco geológico é um processo extremamente dinâmico e a redução identificada pela realização de obras. O aumento, por sua vez, está diretamente ligado ao aumento das ocupações, construções irregulares em áreas impróprias e por fenômenos naturais, como a precipitação pluviométrica.
“Com as chuvas históricas registradas no período 2019/2020, superiores à média histórica dos últimos 40 anos, as áreas sofreram significativas alterações”, informam os técnicos. Desde o último período chuvoso, a PBH fez mais de 5 mil vistorias, removendo, preventivamente, mais de 800 famílias de áreas de risco. Todas foram atendidas e encaminhadas para o Programa Bolsa Moradia e/ou Abono Pecuniário.
Nervos à flor da pele com céu nublado
Assim que as nuvens escuras e carregadas tomam conta do céu, Vânia Bezerra dos Santos adoece. Os nervos ficam à flor da pele, a cabeça dói, o corpo bambeia e ela só pensa no pior: enchente. Nem as palavras de força vindas do marido servem para acalmar a mulher de 66, natural de Afogados da Ingazeira (PE) e moradora há mais de três décadas no Pantanal, área às margens do Rio das Velhas, em Santa Luzia (RMBH).
Se há momentos bons vividos no local, as cheias do Velhas e consequente inundação conseguem apagar as melhores recordações da pernambucana, casada há 50 anos com o conterrâneo Antônio Bezerra dos Santos, de 72, padeiro – juntos, o casal tem cinco filhos pernambucanos e cinco netos e três bisnetos mineiros. “Só penso em me mudar daqui, pois fico em pânico quando começa a chover. A gente passa muito aperto”, ela lamenta.
Nas telhas de amianto da varanda, os dois mostram a marca da água, que subiu quase três metros entre dezembro de 2019 e janeiro de 2020. Desta vez, o Pantanal ficou novamente ilhado e o casal conseguiu sair um dia antes.
Se vem a pressa para tirar os móveis durante as tempestades que elevam o nível do Rio das Velhas, distante 100 metros da casa de Vânia e Antônio, há a faxina depois que o leito do afluente do São Francisco abaixa. Como a casa tem dois andares, toda a mobília é transportada para os cômodos de cima. Na última limpeza geral, há dois anos, Vânia caiu da escada, quebrou o braço e levou 10 pontos na testa. “Tivemos que ficar três meses na casa de uma filha, que mora em região mais alta do município”, conta a mulher.
Com a proximidade do rio, não é raro aparecerem cobras vivas e muitos peixes mortos no quintal. Na penúltima cheia, a situação ficou dramática também para as dezenas de galinhas de Antônio. “Elas estavam numa mangueira do quintal, e tentei de todo jeito que entrassem na parte de cima da casa, pois a água estava chegando perto. O problema é que eu pegava as galinhas e elas voltavam para a água. Morreram mais de 30”, conta o padeiro com tristeza.
HORA DO APERTO
Localizado na parte mais baixa do Bairro Nova Esperança, o Pantanal é uma área de ocupação iniciada há várias décadas. Em cada lote, é possível encontrar várias famílias, de um mesmo núcleo, habitando casas separadas, numa grande comunidade. Natural de Belo Horizonte, Lucineia Rangel, de 49, casada, tem quatro filhos, 10 netos e mora há 25 anos na localidade, distante cinco quilômetros do Centro de Santa Luzia.
No terreno, são quatro moradias, ocupadas por dois filhos, pois um deles mora com os pais. “Uma filha achou melhor se mudar, depois da última enchente, e mora no Palmital (bairro no distrito de São Benedito)”, conta Lucineia. Depois de conferir a “situação” do céu, um assunto corriqueiro no Palmital, a moradora conta que perdeu tudo, “tudo mesmo”, na última enchente: “Todos os móveis, geladeira, televisão, o tanquinho… não ficou nada. E nem tive a sorte de ganhar outros”. No fim de semana passado, ela reviveu os dramas e procurou abrigo antes de acontecer o pior. “Aqui em casa tem evangélico, católico, pedimos ajuda a Deus”, afirma.
Em Valadares, lições de resiliência
A foto de Camila Ferreira dos Santos Matos, de 32 anos, técnica de enfermagem, viralizou nas redes sociais dos moradores de Governador Valadares, na Região Leste do estado. Ela foi flagrada pelo repórter fotográfico Juninho Nogueira quando estava saindo de casa carregando o pequeno Fumo (nome do seu cachorro de estimação), dois smartphones e um carregador portátil dentro de uma sacola, presa entre os dentes, e um lençol.
A coragem de Camila, andando no meio das águas do Rio Doce, impressionou muitas pessoas. Apesar do perigo e dos riscos que ela enfrentou para tirar Fumo de casa e os pertences, é bom explicar que a relação dela com o rio é bem estreita, assim como a de seus vizinhos, moradores do Bairro São Tarcísio, o primeiro a ser inundado. O bairro também é considerado o marco zero de Governador Valadares.
No início da povoação da cidade, no fim do século 19, a área onde hoje se encontra o São Tarcísio ficava entre dois portos de canoas. Um deles se localizava pertinho da Rua Direita (atual Prudente de Morais e bem próximo de onde Camilla estava) e o outro próximo do local onde está agora a Estação de Tratamento de Água do Saae.
Nos dois portos chegavam grãos, frutas e pequenos animais destinados ao comércio essencial para alimentar os moradores de Figueira, distrito de Peçanha, emancipado em 1937, e que mudou de nome em 1938, passando a se chamar Governador Valadares.
A importância histórica do São Tarcísio, aliado ao fato de ser o primeiro a ser alagado, não coloca o bairro como prioridade nas operações de salvamento desencadeadas pelas autoridades. “Aqui, cada um ajuda o outro. São os vizinhos que chegam e perguntam o que a gente está precisando”, disse Camila.
EM FAMÍLIA
Na casa de Camila moram sete pessoas. Ela, a mãe, dois irmãos, a cunhada e dois sobrinhos. E a enchente de 2022 fez um estrago. “Perdemos guarda-roupas, camas e outros bens materiais que não conseguimos subir. A água veio muito rápido e não teve como evitar”, disse. Apaixonada por motocicletas, Camila tem uma Honda XRE 300, que foi levada para a antiga Rua Direita, dos tempos da Figueira, atual Rua Prudente de Morais.
O fato de ter de se virar para se salvar, não somente ela, mas toda a comunidade do São Tarcísio, não é motivo de revolta para Camila. Ela reconhece que a infraestrutura do bairro é deficiente. Afinal, historicamente, o bairro nasceu de uma ocupação desordenada e os acessos são difíceis.
Mesmo assim, ela reivindica uma atenção especial das autoridades municipais e entidades assistenciais, principalmente no pós-enchente. “Às vezes, as autoridades vêm aqui para mostrar a situação. A ajuda, as doações, ficam por nossa conta mesmo, por conta dos vizinhos e amigos”.
Sobre a sequência de tragédias que se abateu sobre Minas Gerais no fim de 2021 e início de 2022, Camila diz que não dá para culpar ninguém, embora ela reconheça a ação do homem na destruição do meio ambiente. “Para mim, nada acontece se não for da vontade de Deus.”
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