Herança saborosa e produtiva, com força suficiente para se multiplicar e seduzir paladares ao longo do tempo. Em Minas, cozinheiros, quitandeiras, confeiteiros, doceiras e demais pessoas dedicadas à arte culinária mantêm, como fonte de renda e tradição cultural, conhecimentos passados pelos pais, avós, tios e outros familiares. Em Caeté, Márcia Merçano faz maravilhas à base de suspiro, inspirada pela mãe. Em Santa Luzia, a cansanção é iguaria no prato preparado por Luiz Floriano, que aprendeu tudo com a mãe e a avó, enquanto Frances Carvalho apresenta, também como lembrança materna, a bacalhoada e o arroz doce. Eis aqui, portanto, um álbum de família retratando sabores, memórias e talento na dupla forno-fogão.
Gustavo Werneck
Estado de Minas
A bacalhoada chega à mesa com tudo a que tem direito e um toque muito especial: amor de família. Na sobremesa, o arroz doce tem gosto de “abraço de mãe”, mesmo que do contato físico restem apenas as melhores lembranças deste mundo. Portadora da sabedoria que atravessa gerações, e passa pelas mãos e o coração, Frances Lima Carvalho de Oliveira, moradora de Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), se orgulha dos ensinamentos que herdou, enaltece a arte culinária mineira e transforma o conhecimento em pratos saborosos, bolos, biscoitos e outras quitandas. Em cada alimento, está a recordação da mãe, Rafaela Lima Carvalho, falecida há dois anos aos 92, da madrinha Andréa, que chama de “dindinha”, e da tia Alba.
“Aprendi muito com elas. Meu trabalho resulta das horas, dias e noites que passamos juntas, conversando sobre o mundo, o presente, o futuro e, claro, a comida que nos dá força para viver, trabalhar, amar. Gosto de cozinhar desde menina. Para resumir, adoro pôr a mão na massa”, afirma a luziense casada com Cassiano Ricardo, mãe de Clévio, André Felipe e Fábio e avó de Laís, Maitê, Ísis, Miguel e Gabriel. “Gabriel nasceu na quarta-feira passada (2 de abril)”, avisa a mamãe e avó coruja, para quem estar à mesa representa o máximo da celebração familiar, principalmente em dias festivos como a Páscoa.
Professora de matemática na Escola Estadual Geraldo Teixeira da Costa, onde também estudou quando adolescente, Frances conta que a cozinha sempre foi excelente companhia. E conselheira. No movimento de amassar o pão, temperar a carne, polvilhar a fôrma para assar os biscoitos ou preparar um assado, conseguiu superar uma já distante fase de depressão. “Nos momentos difíceis, foi uma válvula de escape, me ajudou a enfrentar o pesadelo. Também vale demais para complementar a renda doméstica, pois nunca esteve fácil para ninguém, né?”
Enquanto a equipe do Estado de Minas se deleita com a bacalhoada, Frances mostra alguns segredos da receita, que leva molho branco, e se lembra dos almoços e jantares preparados por dona Rafaela, de quem herdou os olhos verdes e o jeito para a arte de cozinhar. “Ela trabalhava com meu pai no ‘açougue dos Carvalho’, que ficou na história de Santa Luzia como referência de qualidade. Fazia chouriço, vinha gente de longe para comprar. Era mestre no preparo de rabada, dobradinha, feijoada.”
NOVA GERAÇÃO E com quem ficou essa tradição de sabores tão brasileiros? “Sem titubear, Frances abraça o marido, Cassiano Ricardo, e entrega: “Ele!” Todo mundo na casa sabe que a sogra elogiava os pratos feitos pelo genro, confidenciando, sem medo de provocar ciúme, que foi a única pessoa a superá-la na cozinha. Outra pergunta é inevitável. Da nova geração, quem herdou esse dom? A resposta é: Laís, a neta mais velha, de 10 anos. “Adora canjiquinha. Vive pedindo ao avô para fazer. Me ajuda também a fazer bolo. Já Maitê, de 7, e Miguel, de 3, ficam pedindo pedacinhos de ‘massa’ quando estou sovando a massa do pão”, conta a mamãe, com bom humor.
A refeição chega ao fim e só resta elogiar cada garfada do prato principal e cada colherada da sobremesa. Frances sorri, e revela que nada substitui um elogio. “Quando alguém diz que está saboroso, as palavras pagam o serviço, pois preparar o alimento com amor é fundamental.” Contatos podem ser feitos pelo Whatsapp: (31) 98549-0695.
RECEITA
BACALHOADA
Ingredientes
1,5kg de lombo de bacalhau
5 cebolas médias
1,5 litro de leite
3 caixinhas de creme de leite
3 colheres (de sopa) de amido de milho
Azeite extra-virgem
4 claras batidas em neve
Azeitona preta
1,5 kg de batata
MODO DE FAZER
Colocar o bacalhau de molho na véspera do preparo e trocar a água pelo menos cinco vezes. Cozinhar a batata ao dente, cortar em rodelas mais grossas e fritar até ficarem douradas. Refogar uma cebola raladinha juntamente com um pouco de alho, acrescentar o leite, o amido já dissolvido em um pouco de leite, e mexer até engrossar. Acrescentar o creme de leite. Cortar o restante da cebola em rodelas.
Desfiar o bacalhau grosseiramente. Regar um recipiente com azeite, colocar uma camada de batata, bacalhau, azeite, cebola em rodelas e molho branco. Repetir as camadas e colocar as claras e levar ao forno (180 graus) até dourar.
ARROZ DOCE
2 xícaras de arroz
100gr de açúcar
1,5 litro de leite
Leite condensado
1 pitada de sal
Casca de um limão
2 gemas de ovos
MODO DE FAZER
Cozinhar o arroz na água com canela (em pau) e o sal até ficar macio. Acrescentar a casca do limão, o leite, o leite condensado e uma colher (de sopa) bem generosa de manteiga.
Peneirar as gemas, colocar um pouco de leite, mexer bem e acrescentar um pouco do doce. Mexer novamente. Colocar essa mistura no doce. Depois que acrescentar o leite, não parar de mexer.
Sobre o leite condensado, uma observação: é usado na quantidade suficiente para se chegar ao tempero desejado.

Luiz Floriano dos Santos, dono do restaurante Badalo’s: conhecimento veio da mãe e da avó materna. Foto: Jair Amaral/EM/D.A Press
Do quintal à mesa, uma história de afeto e ancestralidade
São muitos anos de aprendizado, observação, criatividade e, sem dúvida, amor pelos temperos, aromas, panelas, sabores e respeito por um grande aliado, elemento quase sagrado: o fogo. Na cozinha, Luiz Floriano dos Santos, conhecido carinhosamente em Santa Luzia (RMBH) por Cunhã, se sente em “casa”, o que significa totalmente à vontade, mesmo quando seu restaurante, o Badalo’s, aberto há 39 anos, está “fervendo” de clientes. Muita calma nessa hora, pois a pressa se torna sempre inimiga da perfeição – e pode fazer o caldo entornar.
“Minha mãe, Ana Senem dos Santos, e minha avó materna, Inah, que já partiram deste mundo, me deixaram de herança o conhecimento. Aprendi tudo com elas, e, com o tempo, fui fazendo releituras dos pratos, testando receitas, inventando comidas. Faziam alimentos simples, mas saborosos e nutritivos, sempre com o uso de temperos caseiros, hortaliças do quintal”, diz Luiz Floriano, admirador de pratos não convencionais, daqueles que fogem dos cardápios tradicionais. “Não tem nada melhor do que buscar uma couve na horta, fazer uma comidinha com tomate do canteiro, fritar um ovo de galinha caipira, tomar uma sopa de cará”, confidencia.
O tempo, como mestre supremo, só trouxe ensinamentos e lapidou a herança alimentar. “Minha mãe e minha avó mantiveram a ancestralidade cultural, tenho raízes negras e indígenas. Vó Inah contava muitas histórias de tempos antigos, e sinto muito que ninguém da família tenha aprendido, com ela, o segredo do preparo de medicamentos e ‘garrafadas’. Era parteira, benzedeira e raizeira, enfim, um poço de conhecimento”, revela o cozinheiro, cujo restaurante, no Bairro Esplanada (@badalosdelivery), abre aos sábados e domingos para almoço.
Entre os pratos preferidos de Cunhã, tanto para degustar como para servir aos clientes, estão três variações do frango – ao molho pardo, com ora-pro-nóbis e com quiabo – e costelinha de porco com cansanção, planta caracterizada por “pelos urticantes que agridem a pele humana ao primeiro contato”, conforme o dicionário Aurélio. Trocando em miúdos, significa que se a pessoa não tiver jeito para colhê-la, ficará com a mão toda sapecada. “Queima mesmo! E coça”, avisa aos marinheiros de primeira viagem.
SEGREDOS DA COZINHA Foi também com a mãe e a avó que Luiz Floriano aprendeu um dos mistérios envolvendo a cansanção. “Curiosamente, ela não provoca reação na palma da mão. Então, o melhor jeito é passar óleo de cozinha na pele do dorso, criando uma camada de proteção. Mas, como tudo na vida, é preciso cuidado e atenção”.
Para receber a equipe do Estado de Minas, o proprietário e cozinheiro do Badalo’s preparou costelinha de porco com cansanção acompanhada de angu, arroz e feijão. Tudo bem simples, no maior capricho. Ao falar sobre o trato com a planta, fez uma recomendação. “Hoje, talvez em nome da pressa, muita gente bate a cansação no liquidificador. Prefiro o método artesanal, macerando (amassando), pois aprendi assim. Mas cada um tem seu jeito, né?” Para dividir a experiência com os leitores, Cunhã detalhou a receita, certo de que compartilhar o que se aprende é valioso para perpetuar o conhecimento.
RECEITA
Costelinha de porco com cansanção
Ingredientes
1kg de costelinha, cortada em cubos
1 cebola, picadinha
Tempero de alho e sal (a gosto)
1 maço generoso de cansanção, bem lavada e rasgada (cortada em pedaços)
1 colher de chá de colorau
Modo de fazer
Fritar a costelinha em uma colher de óleo. Não precisa muito, pois a carne solta muita gordura. Pingar água até que esteja bem macia. Acrescentar a cebola e o tempero, misturar e reservar em outra panela.
Na mesma panela em que se cozinhou a costelinha, colocar a cansanção com o colorau e refogá-la, em fogo baixo, macerando por cerca de 15 minutos até virar uma pasta.
Em seguida, voltar com a costelinha para a panela (com a cansanção), acrescentar a cebola e três xícaras de água e deixar cozinhando por 40 minutos. Importante verificar (provando um pouquinho), nesse processo, se a cansanção está totalmente livre da urtiga. Nesse caso, deixe cozinhando mais tempo. Ao servir, use bastante cheiro verde.
Porção para cinco pessoas
Doce inspiração para seduzir o paladar e deixar muita saudade
Em Caeté (RMBH), a confeiteira Márcia Merçano abre as portas de casa para o seu universo povoado de histórias familiares, recordações da infância e memórias afetivas ao sabor do aconchego mineiro. Em cada detalhe, em especial nos doces artisticamente elaborados que produz, paira a luminosa influência de dona Ana Merçano, falecida há três anos. “Minha mãe continua me inspirando em tudo, na vida e no trabalho. Fazia maravilhosos bolos de casamento, era craque na cozinha.” Daqueles primeiros anos, a confeiteira guardou na mente uma curiosidade. “O suspiro nasceu para ser usado como decoração dos bolos. Para o nosso café da manhã, minha mãe preparava, com carinho, as inesquecíveis pipocas de polvilho. Cresci nesse ambiente, fui aprimorando as técnicas, imprimindo meu estilo,” conta Márcia, mãe de Luíza, de 29 anos.
Uma das especialidades da moradora de Caeté, que comercializa seus produtos com a marca Só Pães de Mel (@sopaesdemel), está nos suspiros de vários sabores – uma sobremesa delicada e deliciosa. Tem de doce de leite, café, canela, limão, leite condensado, morango, maracujá e outros, tudo remetendo à infância. Impossível ficar apenas no primeiro suspiro. Derretem na boca, e, como o próprio nome diz, fazem qualquer um suspirar.
Agora, com simpatia, Márcia traz à mesa um rocambole de suspiro, que, de tão gostoso e leve, mais parece um passaporte para o paraíso, passando pelo céu da boca. Foi ainda nos tempos de infância que Márcia se acostumou a manter os olhos atentos não só aos trabalhos de dona Ana Merçano, mas também das irmãs, que sempre desenvolveram produtos voltados para a culinária e confeitaria.
Pensa que acabou? Pois ainda tem o Pão de Mel, especialidade da casa e marca registrada de Márcia Merçano. Vai bem com o cafezinho coado na hora. “Tenho um cardápio variado e aceito encomendas em Caeté, BH e cidades da região metropolitana. Nosso ateliê atende por encomendas.”
“GRAND FINALE” Agora, a confeiteira leva a equipe do EM à cozinha, abre o forno e retira a base da Pavlova, um espetáculo para todos os sentidos essa releitura da famosa sobremesa. Nesse momento, vem mais uma lição de história e culinária. Crocante por fora e macia por dentro, à base de merengue e decorado com frutas vermelhas ou amarelas, o doce homenageia a célebre bailarina russa Anna Pavlova (1881-1931). Teria sido criada após uma viagem da grande estrela do balé á Austrália e Nova Zelândia.
À mesa, a Pavlova ilumina o ambiente, pois é uma verdadeira obra de arte. Então, neste “gran finale” da visita, vamos viajar pelos quatro cantos do mundo, felizes da vida não só pela bela receptividade como pelo mix de sabores encontrados.
RECEITA DE PÃO DE MEL
Ingredientes
1 xícara (chá) de mel
1 xícara (chá) de açúcar mascavo
1 colher (de sopa, rasa) de bicarbonato
1 colher (de sopa, rasa) de cravo
1 colher (de sopa, rasa) de canela em pó
1 xícara (chá) de cacau em pó
3 xícaras de farinha de trigo
1 colher (de sopa) de fermento
300 ml de leite
1/2 xícara de óleo
MODO DE FAZER
Bater os ingredientes líquidos e misturar aos secos. Colocar em uma fôrma untada e polvilhada. Levar ao forno (180 graus) por cerca de 20 minutos. Depois de frio, usar um cortador no tamanho desejado, rechear com doce de leite e banhar no chocolate. Rende 45 unidades.
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